Poder Para Abusar
Em um comentário sobre Mateus 23, Dale
Brunner diz: ‘Neste capítulo, Jesus critica duramente a falsa religião, em
especial a falsa liderança religiosa.
Os fariseus estabeleceram-se como
governadores e juízes do povo, de forma a criarem uma espécie de comunidade
religiosa. Uma das características mais importantes dessa comunidade era a
preocupação com a pureza. Os fariseus eram rígidos e obcecados com limpeza
física e moral. O judeu que se adequava a esse código de pureza era considerado
um membro respeitável dessa sociedade. Os fariseus barravam da comunidade
aqueles que não queriam ou não conseguiam se adequar. O poder deles para
determinar quem estava ‘dentro’ ou ’fora’ é deixado claro em João 12.42-43.
Neste texto vemos que muitos líderes judeus criam em Jesus, mas não o admitiam
por medo de que os fariseus os excomungassem da sinagoga. O poder dos fariseus
para decidir quem estava dentro e quem estava fora da comunidade era o poder
que tinham para abusar.
Hoje, quando líderes de igreja se
arrogam o direito de serem os guardas dos portões, estabelecendo como critério
de aceitação ou rejeição o desempenho religioso ao invés da fé em Jesus, eles
se tornam os líderes estrategicamente mal colocados que obstruem a vida do
corpo de Cristo. Agindo assim, estão perpetuando o ministério dos fariseus.
Na maioria dos casos de abuso
espiritual, a questão central é o controle de pessoas. Quando Jesus anunciou a
nova comunidade de Deus, colocando-se como líder dela, os fariseus viram
escapar de suas mãos o controle que tinham sobre a sociedade. Isto não só
incitou a ira deles contra Jesus, mas também os galvanizou para que exercessem
seu poder contra ele. O abuso requer
poder, e os fariseus o tinham.
Escrúpulos religiosos e o desejo de
controlar os outros fizeram dos fariseus os mais perigosos dos homens. Como C.
S. Lewis disse certa vez: ‘Se o chamamento divino não nos tornar melhores, ele
nos tornará bem piores. De todos os homens maus, os maus religiosos são os
piores’.
Jesus começa a desmascarar os
fariseus nos mostrando como eles se apoderaram do poder com o qual controlavam
seus seguidores. A base do poder deles era a cadeira de Moisés. Segundo ele, ‘Os
mestres da lei e os fariseus se assentam na cadeira de Moisés’ (Mt
23.2, NVI). ‘A cadeira de Moisés’
não é uma mera metáfora; era uma cadeira de verdade, um trono de pedra colocado
na frente das sinagogas.
Nos dias de hoje, é comum ouvirmos
que ‘conhecimento é poder’. No tempo de Jesus, o conhecimento da lei de Moisés
era poder. Os fariseus conheciam de cor o ensino de Moisés e sabiam como
ensiná-lo e aplicá-lo. Eles eram os especialistas. Do alto dessa posição de
poder, eles olhavam para a ‘plebe’ ou ‘ralé’ (como eles a chamavam) lá embaixo
e declaravam que ela era maldita porque ‘não entendia nada da lei’ (Jo 7.49,
ARA e NVI). Portanto, para esses abusadores eclesiásticos do primeiro século, a
cadeira de Moisés funcionava quase do mesmo modo que os títulos de liderança,
graus acadêmicos e cargos de igreja funcionam para os abusadores espirituais
dos nossos dias.
Quando Paulo descobriu que Pedro seu
superior, como relatado em Gálatas 2.14: “não procedia corretamente segundo a verdade
do evangelho”, ele “resistiu-lhe face à face, porque se tornara
repreensível” (v. 11).
Entre outras coisas, Paulo declarou
por meio da sua atitude que a verdade sempre desconsidera posição ou título na
igreja. A verdade, bem como a autoridade dela decorrente, não provém de
personalidade ou cargo. Provém da Palavra de Deus e do evangelho que ela
proclama. Michael Horton sustenta que “não existem coisas tais como o ‘ungido
do Senhor’, pregadores que estão acima da Palavra. Qualquer declaração de que
se tem autoridade divina para comandar, esperar, revelar ou dirigir de forma
não estabelecida nas páginas das Escrituras é característica de um tirano
espiritual e fariseu”.
Alguns líderes de igreja defendem
seu estilo de liderança autocrático e a estrutura hierárquica na igreja em nome
da ‘unidade da igreja’. Apenas uma forte autoridade central, argumentam, pode
manter a disciplina e a unidade entre os irmãos. O problema é claro, é que a
real unidade nunca pode ser obtida através da coerção. O autoritarismo cristão
confunde unidade espiritual com unanimidade. Unidade se obtém quando pessoas
livres submetem-se livremente umas às outras. Como acontece, isso é um
mistério; o processo é freqüentemente muito confuso e requer assunção mútua de
riscos. Unanimidade ou uniformidade, por outro lado, pode ser obtida com
controles autocráticos. Pode ser prescrita, medida e monitorada. É
essencialmente externa, enquanto a verdadeira unidade é acima de tudo, interna.
A uniformidade busca um comportamento correto, enquanto a unidade deseja um
espírito correto. A unanimidade exige que todos nós experimentemos a Deus da
mesma maneira e expressemos essa experiência com o mesmo vocabulário. A unidade
tem contentamento nas diferenças.
Os abusadores espirituais têm
capacidade para impor unanimidade e uniformidade por causa das estruturas
hierárquicas que eles constroem. É por isso também que eles podem exigir
tratamento e honra preferencial.
A honra que damos aos nossos
líderes, contudo, só pode ser oferecida livremente. Não se baseia em uma
cadeira de autoridade, mas numa liderança que se expressa em serviço. Nossos
verdadeiros líderes são servos de Cristo e nossos.
Jesus declarou de forma inequívoca
que a única autoridade espiritual legítima é a autoridade que se expressa no
servir. Ele disse que apesar de os presidentes das empresas e do governo
mandarem em seus subordinados, “não será assim entre vós”. Se
alguém almeja ser grande; a grandeza de fato deve se expressar através do
serviço. O que tem verdadeira autoridade deverá servir como escravo, não como
governador (Mt 20.24-28; Jo 13). Esta percepção facilita-nos discernir quem são
as verdadeiras autoridades na igreja.
Em Lucas 12.42 Jesus retrata o que
é a verdadeira autoridade espiritual através de uma parábola. Ele pergunta: “Quem
é, pois, o mordomo fiel e prudente, a quem o senhor confiará os seus conservos para
dar-lhes o sustento a seu tempo?” O verdadeiro líder não é
necessariamente superdotado de dons ou talentos; ele não precisa da cadeira de
Moisés para comprovar sua eficácia. Tudo o que ele precisa fazer é ser fiel e
sábio, servindo comida aos seus seguidores quando necessário.
Existem pastores e líderes de igreja que sentem a necessidade de títulos
e reconhecimento especial para ganhar o respeito de seus seguidores. Eles
tentam parecer fortes e decididos a fim de ganhar a confiança das pessoas, mas
tudo o que Jesus espera deles é que cozinhem comida espiritual nutritiva (não
necessariamente especial) e que saibam quando servi-la. Quando Jesus compara um
bom líder a um mordomo fiel, ele não apresenta esta definição como uma opção
entre muitas. No reino de Deus, a liderança servidora é o único tipo de
liderança que existe. Se um ministro a rejeita, seu julgamento é rápido e
severo. O líder abusivo irá receber açoites (vv. 47-48) e poderá até ser ‘cortado
... em pedaços’ (v. 46).
Em certa feita, quando Jesus lavou
os pés dos seus seguidores, ele lhes disse: “Vós me chamais o Mestre e o
Senhor, e dizeis bem: porque eu o sou. Ora, se eu, sendo o Senhor e o Mestre,
vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns dos outros. Porque eu vos
dei o exemplo” (Jo 13.13-15). Na igreja de Jesus, a verdadeira
autoridade espiritual não sobe à cadeira de Moisés para governar, mas se
ajoelha para servir.
O apóstolo Paulo vê claramente
que o estilo de liderança de Jesus deve ser também o nosso. Nossa atitude, diz
ele, deveria ser a mesma “de Cristo Jesus, que embora sendo Deus, não
considerou que o ser igual a Deus era algo a que devia apegar-se; mas
esvaziou-se a si mesmo, vindo a ser servo” (Fp 2.5-7). Jesus abdicou de
sua autoridade posicional como Deus e assumiu sua autoridade funcional como
servo de Deus. Como seus seguidores, nós não podemos rejeitar a autoridade
servidora para tomar o assento da autoridade posicional. A autoridade
posicional carrega consigo o poder de coagir, de compelir. A autoridade
servidora, no entanto, abdica prazerosamente desse poder, de forma que quem se
submete a ela somente pode fazê-la de livre e espontânea vontade.
Paulo nunca apelou para a cadeira de
Moisés ou a seus equivalentes para fazer valer a sua vontade. Ao contrário, ele
se tornou vulnerável aos seus seguidores, convidando-os a responderem em
mansidão: “Para vós outros, ó coríntios, abrem-se os nossos lábios e alarga-se o
nosso coração. Não tendes limites em nós; mais estais limitados em vossos
próprios afetos. Ora, como justa retribuição (falo-vos como a filhos), dilatai-vos
também vós” (2 Co 6.11-13).
Portanto, podemos reafirmar o
que já dissemos anteriormente, que a verdadeira autoridade surge a partir do
serviço e que uma pessoa se submete a ela voluntariamente. Definir liderança e
submissão a líderes nestes termos torna o abuso espiritual virtualmente
impossível.
Abuso
Espiritual – Ken Blue – ABU.